by Antônio Carlos Kantuta

terça-feira, 22 de março de 2011

Começa, no ar da antemanhã


Começa, no ar da antemanhã,
A haver o que vai ser o dia.
É uma sombra entre as sombras vã.
Mais tarde, quanto é a manhã?
Agora é nada, noite fria.

É nada, mas é diferente
Da sombra em que a noite está;
E há nela já a nostalgia
Não do passado, mas do dia
Que é afinal o que será.

Começa, no ar da antemanhã - Fernando Pessoa.


segunda-feira, 14 de março de 2011

Botes e Fragatas


Mulheres coloridas
Mulheres amarelas, pretas, brancas
Mulher Maria,
Mulher Rosa,
Mulheres altivas, singelas.
Mulher cor de canela, da cor da terra,
Mulheres frias, quentes
Mulher amada, amante
Mulher mulher
Mulher homem
Mulher jardim, água, estrela,
Iaiá no portão de laçarote.
Criança, moça e senhora,
alada no sonho de Ísis, mulher.
Suada nas ladeiras da Bahia, mulher.
Que vai na rede e vem na maré.
Mulher estranha e bonita
Mulher que canta e é cantada
Dona da rua, da casa, do que quer.
Mulher presidente, senadora,
Mulher que pinta e é pintada
ora escultura ora escultora
Melhor parte, mulher toda
Minha primeira professora.
Versão forte, colorida
Inteligente e perfumada
Que chega elegante e sedutora
Em botes e fragatas
Nos festejos das águas do mar.


Antônio Carlos Kantuta

Exu



Não sou preto, branco ou vermelho;
tenho as cores e formas que quiser.
Não sou diabo nem santo,
Sou Exu!
Mando e desmando, traço e risco, faço e desfaço.
Estou e não vou.
Tiro e não dou.
Sou Exu.
Passo e cruzo.
Traço, misturo e arrasto o pé.
Sou reboliço e alegria.
Rodo, tiro e boto;
jogo e faço fé.
Sou nuvem, vento e poeira.
Quando eu quero, homem e mulher.
Sou das praias e da maré.
Ocupo todos os cantos;
Sou menino, avô, maluco até.
Posso ser João, Maria ou José.
Sou ponto do cruzamento.
Durmo acordado e ronco falando.
Corro, grito e pulo.
Faço filho assobiando.
Sou argamassa, de sonho, carne e areia.
Sou a gente sem bandeira.
O espeto, meu bastão.
O assento? O vento!...
Sou do mundo, nem do campo, nem da cidade.
Não tenho idade.
Recebo e respondo pelas pontas, pelos chifres da Nação.
Sou Exu.
Sou agito, vida, ação.
Sou os cornos da lua nova;
a barriga da lua cheia!...
Quer mais?
Não dou, não tô mais aqui.
 

Exu, poema do escultor Mário Cravo para Jorge Amado.
Salvador, 1993.

quarta-feira, 9 de março de 2011

E Pra Variar: Mariana Aydar com Dandan


A musa Mariana Aydar no trio com Daniela Mercury no carnaval de Salvador.


Daniela Mercury: A Reinvenção do Carnaval Baiano...


Um tecido pérola negra. A voz andarilha de uma chefe da folia com necessários traços educativos. Ela canta e dança na certeza de quem instaura beleza no Carnaval. E sai a favor do povo, dialogando com o mercado e os intelectuais, entre camarotes e cordas, se faz sem-cordas para dizer que na Bahia também se inventa. Sem isso de rainha, ela é única na asserção do termo, uma majestade inviolável e para além das antipatias que pode causar. Repertório amalgâmico esculpido na tradição escolar tropicalista, reverente aos mestres absolutos - de Tom Zé a Gilberto Gil, passando por Chico Buarque e Luiz Gonzaga, aportando no mar Lenine, devorando o melhor contemporâneo que a música popular nos dá - , ela faz o tal do Axé tremeluzindo a bandeira da qualidade. Meio Carmem Miranda e Baby Consuelo, naquela emissão sem igual que registra Márcia Short, Daniela bebeu nessas fontes. Assim como: quanto a princesa Ivete Sangalo deve a rainha Daniela Mercury?
Um tecido branco e azul reunindo diversidades e cantando para os membros do "amor que não ousa dizer o nome", sem reticências, nem titubeares; diva complexa como tem que ser as artistas de verdade. Uma presença iluminada no Carnaval de Salvador, com tanta vontade de novidade, sem perder a graça da festa, da molecagem, da brincadeira, na medida certa de alguém que respeita a inteligência alheia. Faíscas da beleza que persigo; doses de feitiço daquela que mexe com nosso corpo inteiro nos levando a gozos e pensamentos. Daniela é à maneira da fruição. Trocas simbólicas da Bahia com o mundo. Canibália espetacular - circularidade de uma voz nascida para o negro Carnaval deste lugar e que ela espreita precisa ,com fé e Ilê Aiyê, sem macular o universo de quem gesta nossa musicalidade...
Cantora trieletrizada que compõe de verdade. A melhor companhia feminina nessa seara desgastante que se tornou o Carnaval da Bahia...
Um tempo para que se dê mais espaços à grandeza de Márcia Short; a beleza do Carnaval do 3naFolia; a lindeza de Juliana Ribeiro; aos passeios loucos da autoridade maior Baby Consuelo; a força do canto da outra diva de verdade, a princesa Margareth Menezes.
Daniela Mercury traz consigo tudo isso: e a gente aprende que o melhor da gente, depois de Fé e Amor, é Arte. 

Texto retirado do blog http://memoriasdomar.blogspot.com/

terça-feira, 8 de março de 2011

Mulheres do Mundo...





Simone Moreno e Lisa Nilsson in Concert

Retrato de Um Poeta Quando Jovem



RETRATO DE UM POETA QUANDO JOVEM
José Saramago



Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.


José Saramago, in Os Poemas Possíveis, Lisboa, 1981.

sábado, 5 de março de 2011



MORMAÇO DE PRIMAVERA


Entre chuva e chuva, o mormaço.
A luz que nos entrega o dia
não dá ainda para distinguir
o sujo do encardido,
o fugaz, do provisório.
A própria luz é molhada.
De tão baça, não me deixa
sequer enxergar o fundo
dos olhos claros da mulher amada.

Mas é com esta luz mesmo,
difusa e dolorida,
que é preciso encontrar as cores certas
para poder trabalhar a primavera.

Thiago de Mello, 1971,
nos campos de Cautín.